A serra -

Morar na serra tinha feito muito bem aos seus ossos cansados. Aos cinqüenta e oito anos tinha deixado a mocidade esvair por seus dedos, parecia ter entrado na casa dos setenta. Durante anos viveu preocupado, sem saber ao certo o que fazer para mudar o imutável. Na capital a vida era outra, uma agitação sem sentido, um frenesi louco, as pessoas caminhavam como zumbis tecno-eletrônicos, sem um sopro de vida genuíno, pensando somente em produzir e consumir.

O ar gelado da montanha permitia uma vida amena, um caminhar suave que se sentia em todos os habitantes da pequena cidade. Porém, como nada é perfeito, os moradores tinham tempo demais, tempo de sobra para futricar a vida alheia. Mas isso não o incomodava, não havia nada para descobrir, ele havia se aposentado, após trinta e cinco anos de contribuição para a previdência privada e fazia três anos havia se mudado para lá.

Não tinha amigos, falava com os vizinhos apenas o bastante para não parecer antipático. Comia fora, e tinha uma diarista que vinha todas as quartas-feiras, e arrumava a casa sem fazer perguntas. No restaurante era discreto, sentava-se sempre àquela mesa no cantinho, e pedia a mesma refeição: salada, carne, suco de laranja e pudim.

Era uma terapia observar os passantes, ou os locais, como ele preferia dizer. Cada qual com seu jeito de andar e algumas manias que o deixavam mais curioso. Uns falavam sozinhos, em tom grave, o rosto marcado com expressões secas, como se estivesse brigando consigo. Outros eram alegres e pareciam apenas cantar, e cantavam para si e para os outros, o que podia ser desesperador quando tinham voz de taquara rachada.

Sentado na praça, mesmo sem conhecer ninguém, parecia conhecer a todos. O baixinho, por exemplo, vinha sempre de boné, chegava as 10:00, olhava para um lado e para outro, alisava o bigode preto, e sentava, no mesmo banco, desde quando havia começado a estudá-lo. Depois, sempre desconfiado de estar sendo observado, tirava o boné e deixava a careca exposta ao sol por uns 30 minutos, e ia embora.

Tinha a menininha de uns 17 anos que traía seu noivo com outros três rapazes, em dias diferentes, sempre na mesma praça. Na segunda-feira era o moreno forte, cabo da polícia. Na terça era um rapazote da escola dela, ficavam juntinhos com o mesmo uniforme, fingindo estudar no coreto, e de vez em quando lhe dava uma bitoca. E na quinta-feira, um loirinho, mauricinho, que a pegava de carro na praça. Nos finais de semana ela estava sempre lá na praça orgulhosa do namorado, um aspirante a tenente da marinha, que só subia a serra nos finais de semana.

Era isso que ele gostava, dessa cumplicidade velada que o favorecia. De saber tudo de todos. Era como se fosse invisível, por ser idoso ninguém lhe dava atenção. Faziam milhares de coisas na sua presença, acreditando que o velhinho estava em outra estação. Todos eles eram tolos. O que o movia, desde que havia mudado para a Serra, o que tinha descoberto como sendo o verdadeiro elixir da juventude, que se não o fazia mais moço por fora, com certeza o fazia por dentro era usar do seu conhecimento para fazer com que as pessoas acertassem o passo.

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Mas isso veremos no próximo capítulo.

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